segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Tróia - tentativa de reconstituição de parte de uma unidade fabril romana para salga de peixe.

Tróia, no concelho de Grândola, termo de Beja, pertencente à província do Baixo-Alentejo, é sob o ponto de vista arqueológico, em Portugal, uma das mais importantes ruínas romanas com ocupação paleocristã. Há muito que se encontram a descoberto mesmo à beira da água, na margem esquerda do estuário do rio Sado, estruturas monumentais de uma basílica cristã, ainda com pinturas a fresco; habitações romanas com dois pisos; termas com mosaicos (o balneário que referimos, mais abaixo, no nosso relatório); várias necrópoles de períodos distintos, apresentando alguns dos túmulos uma cobertura em forma de pipa, construída em alvenaria, no género das de mármore (cupas) de Beja; e muitas outras estruturas de pedra e tijolo, de funcionalidade diversa, coevas ou mais tardias do que a complexa rede de tanques de salga (as cetárias onde se realizavam as salmouras de várias especialidades de garum, a pasta de peixe que se comercializava para todo o Império) a que tudo se sobrepôs e justapôs à medida que se acentuava a decadência desta industria.

Depois de uma visita, em criança, guiada pela mão materna, que sempre relembramos, chegou a vez de, em Fevereiro de 1989, voltarmos ao local, como técnico do Museu Regional de Beja, a pedido de Susana Correia e Filomena Barata, arqueólogas dos Serviços de Arqueologia da Zona Sul, Direcção Regional de Évora, do IPPC (grosso modo o actual IGESPAR), para tentarmos reconstituir iconograficamente parte de uma unidade fabril destinada à salga de peixe.

Era um trabalho urgente porque, parece-nos, havia que realizar, para determinado certame internacional, no complexo turístico de Tróia, uma exposição sobre as ruínas. Partindo das estruturas visíveis e sem qualquer relatório de prospecção realizada no local, cuja informação seria indispensável para uma tentativa de reconstituição mais correcta, optámos por avançar na sua interpretação, tendo como base os tanques e muros solidários como estruturas mais antigas, além da coerência funcional que uma industria deste teor exigiria. As hipóteses que levantámos eram admissíveis pelo que o resultado foi, pode dizer-se, positivo. Em menos de uma semana entregávamos um relatório e quatro desenhos (planta, então actual, da área estudada; uma tentativa de reconstituição do aspecto primeiro da unidade fabril; outra, em corte parcial, perspéctico, do posicionamento dos tanques relativamente ao pátio interior e ainda uma outra perspectiva do edifício na fase final de utilização).

O estudo esteve para ser publicado na revista da Sociedade Arqueológico Lusitana, mas vicissitudes várias impediram que visse, impresso, a luz do dia, a não ser parcelarmente, como exemplo pedagógico, numa obra sobre Miróbriga , editada em 1992, e, mesmo assim, com a legenda dúbia, pois quem desenhou podia não ter sido quem estudou a reconstituição que, nesse caso, são a mesma pessoa. Infelizmente, estas incongruências, não são caso único.

É ainda necessário prevenir o leitor sobre a existência de um outro estudo pluridisciplinar, também de reconstituição da mesma unidade fabril, publicado no ano de 1994, em Paris . Em termos desenhísticos as semelhanças entre os dois estudos são surpreendentes, até nalguns pormenores, assim os julgamos, de análise mais problemática. Os autores recuam também a 1989 o início dos seus trabalhos. É de facto muito estranho que na altura ninguém nos tivesse alertado, nem sequer o arqueólogo director das ruínas de Tróia, dr. Cavaleiro Paixão, para o facto de mais alguém, ainda por cima uma equipa conhecida, estar também a realizar estudos na mesma área.

O nosso objectivo foi, em suma, o de tentar reconstituir uma parte visível de uma das unidades fabris de Tróia, cujo funcionamento pleno precedeu as termas e os enterramentos que se lhe adossaram e sobrepuseram. No relatório abaixo, sem qualquer retoque, datado de há vinte e dois anos, justificamos as quatro ilustrações que o acompanham:



“A tentativa de reconstituição arquitectónica de parte de uma unidade fabril, parcialmente escavada, do grandioso complexo conserveiro romano da estação arqueológica de Tróia, constitui um sério desafio à nossa capacidade de análise e compreensão das suas estruturas visíveis. Estas, nem sempre coerentes na sua organização espacial, apresentam-nos uma série de modificações que, ao longo dos tempos, resultaram em compartimentos de utilidade diversa.

Assim, como podemos ver na planta actual, duas grandes salas contíguas A e B, perpendiculares entre si, cada uma delas integrando tanques de salga C, justapostos ao longo de um corredor, servidos por um pátio interior D, comum, provido de poço e tanque adossado E, foram provavelmente as últimas a ser utilizadas na actividade industrial num período já decadente do Império; o tanque F, “roubado” à sala A, foi adaptado ao balneário situado paredes-meias a sudoeste; a pequena ruela G, esconde sob a areia um outro tanque de salga H, elo de ligação com a sala menor I, aproveitada para cemitério e igualmente provida de tanques de salga justapostos.

Vamos avançar par uma tentativa de reconstituição na primeira fase de utilização da unidade fabril, mais particularmente, da área relativa aos tanques de salga, uma vez que as áreas de aquecimento, preparação e armazenagem se desconhecem – a falta destas áreas de apoio ao “coração” da unidade fabril dificulta necessariamente a fidelidade da representação exterior, cujo aspecto e volume seria por elas modificado.

São evidentes os pilares e as paredes da construção mais antiga (ver legenda gráfica da planta), assim como o levantamento tardio de diversas paredes com o fim de compartimentá-la da maneira que vimos. Deste modo, na sala A, os pilares J que dão para o pátio, sem as paredes M que, de permeio, quase os fizeram desaparecer, caracterizam, pelo menos nesta ala, parte de uma construção alpendrada compluvial.

Os pilares P – perfeitamente identificados nas salas A e B e deduzíveis nas outras duas – indicam-nos a posição exacta da cumeeira, a partir da qual funcionaram quatro águas do telhado para o exterior e outras tantas para o interior.

Não sabemos se todas as alas teriam pilares que permitissem a utilização de grandes vãos, em relação ao pátio, no entanto parece-nos que a parede N é de construção tardia, com a finalidade de aumentar a área de utilização da ala B, fazendo desaparecer total ou parcialmente os alicerces dos pilares, os quais ainda hoje se poderão encontrar sob o pavimento de opus signinum. A construção de mais algumas paredes e dos pequenos tanques O, dividiram para sempre as alas A e B, anteriormente comunicantes – a própria união, de certo modo defeituosa R, no local onde antes foi um vão, perto do pilar de canto Q, revela a menor antiguidade da parede N, acrescida ainda do facto da sua grande proximidade ao tanque do poço deixar somente uma largura de 40cm para passagem, o que é manifestamente pouco funcional, dadas as características desta industria conserveira que, sem dúvida, requeria desenvoltura de movimentos. O interior, total ou parcialmente alpendrado, permitindo um acesso fácil e rápido, sem atropelos, dos operários, desde qualquer tanque de salga ao poço, situado sensivelmente a meio do pátio, é, quanto a nós, a hipótese mas provável, porque mais funcional – daí a tentativa de reconstituição agora executada (ver ilustrações dos aspectos iniciais da unidade fabril e da disposição dos tanques de salga no interior).

A porta principal situar-se-ia numa das alas da construção ainda por escavar, área onde possivelmente não haveria tanques de salga, constituindo uma das instalações de preparação ou outra. Esperemos que futuras escavações possam esclarecer melhor o funcionamento desta unidade fabril, cuja parte visível tem já uma dimensão razoável, cerca de 39x28m.

Para finalizar executámos um desenho livre, perspéctico, interpretativo da fase final de utilização dos tanques de salga, em duas salas distintas, a A e a B; o que mais é representado não pode ter rigor, pois não sabemos quando é que o tanque F, aproveitado no balneário, deixou de ser utilizado, nem quando foi aberta a pequena ruela e utilizados os tanques adjacentes para cemitério.

Tróia, Fevereiro de 1989, LB”

Nota: Este estudo foi publicado na nossa rubrica "Iconografia Pacense", no jornal Diário do Alentejo, em 2009.











Sem comentários:

Enviar um comentário