segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma estrutura enigmática das ruínas romanas de Tróia, Grândola.

Acabei de observar o desenho de reconstituição, conforme informação de Vitor Rafaell, de uma provável estrutura de captação, elevação e armazenamento de água de Tróia, Grândola (QUINTELA, MASCARENHAS E CARDOSO, 1993-1994, "Conímbriga", Coimbra, 32-33; 157-169, cit. "al-madan", nº7,II série, Out.1998, pp.33-36). Assim, devido à troca de ideias ( http://www.facebook.com/n/?photo.php&fbid=131217210244310&set=a.123622671003764.13728.100000680959406&mid=35e4d65G5f36b913G14b27f2G10&n_m=leonelborrela%40gmail.com) sobre se a dita estrutura será ou não uma estrutura hidráulica, como afirmam alguns especialistas - apesar de nunca ter sido feita uma escavação completa do local - ou, em contrapartida, um cais, como defendo, aqui ficam a foto de Rafaell, o desenho da estrutura hidráulica (op.cit) e a minha tentativa de reconstituição da funcionalidade de cais, que julgo suficientemente explícita.



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Tróia - tentativa de reconstituição de parte de uma unidade fabril romana para salga de peixe.

Tróia, no concelho de Grândola, termo de Beja, pertencente à província do Baixo-Alentejo, é sob o ponto de vista arqueológico, em Portugal, uma das mais importantes ruínas romanas com ocupação paleocristã. Há muito que se encontram a descoberto mesmo à beira da água, na margem esquerda do estuário do rio Sado, estruturas monumentais de uma basílica cristã, ainda com pinturas a fresco; habitações romanas com dois pisos; termas com mosaicos (o balneário que referimos, mais abaixo, no nosso relatório); várias necrópoles de períodos distintos, apresentando alguns dos túmulos uma cobertura em forma de pipa, construída em alvenaria, no género das de mármore (cupas) de Beja; e muitas outras estruturas de pedra e tijolo, de funcionalidade diversa, coevas ou mais tardias do que a complexa rede de tanques de salga (as cetárias onde se realizavam as salmouras de várias especialidades de garum, a pasta de peixe que se comercializava para todo o Império) a que tudo se sobrepôs e justapôs à medida que se acentuava a decadência desta industria.

Depois de uma visita, em criança, guiada pela mão materna, que sempre relembramos, chegou a vez de, em Fevereiro de 1989, voltarmos ao local, como técnico do Museu Regional de Beja, a pedido de Susana Correia e Filomena Barata, arqueólogas dos Serviços de Arqueologia da Zona Sul, Direcção Regional de Évora, do IPPC (grosso modo o actual IGESPAR), para tentarmos reconstituir iconograficamente parte de uma unidade fabril destinada à salga de peixe.

Era um trabalho urgente porque, parece-nos, havia que realizar, para determinado certame internacional, no complexo turístico de Tróia, uma exposição sobre as ruínas. Partindo das estruturas visíveis e sem qualquer relatório de prospecção realizada no local, cuja informação seria indispensável para uma tentativa de reconstituição mais correcta, optámos por avançar na sua interpretação, tendo como base os tanques e muros solidários como estruturas mais antigas, além da coerência funcional que uma industria deste teor exigiria. As hipóteses que levantámos eram admissíveis pelo que o resultado foi, pode dizer-se, positivo. Em menos de uma semana entregávamos um relatório e quatro desenhos (planta, então actual, da área estudada; uma tentativa de reconstituição do aspecto primeiro da unidade fabril; outra, em corte parcial, perspéctico, do posicionamento dos tanques relativamente ao pátio interior e ainda uma outra perspectiva do edifício na fase final de utilização).

O estudo esteve para ser publicado na revista da Sociedade Arqueológico Lusitana, mas vicissitudes várias impediram que visse, impresso, a luz do dia, a não ser parcelarmente, como exemplo pedagógico, numa obra sobre Miróbriga , editada em 1992, e, mesmo assim, com a legenda dúbia, pois quem desenhou podia não ter sido quem estudou a reconstituição que, nesse caso, são a mesma pessoa. Infelizmente, estas incongruências, não são caso único.

É ainda necessário prevenir o leitor sobre a existência de um outro estudo pluridisciplinar, também de reconstituição da mesma unidade fabril, publicado no ano de 1994, em Paris . Em termos desenhísticos as semelhanças entre os dois estudos são surpreendentes, até nalguns pormenores, assim os julgamos, de análise mais problemática. Os autores recuam também a 1989 o início dos seus trabalhos. É de facto muito estranho que na altura ninguém nos tivesse alertado, nem sequer o arqueólogo director das ruínas de Tróia, dr. Cavaleiro Paixão, para o facto de mais alguém, ainda por cima uma equipa conhecida, estar também a realizar estudos na mesma área.

O nosso objectivo foi, em suma, o de tentar reconstituir uma parte visível de uma das unidades fabris de Tróia, cujo funcionamento pleno precedeu as termas e os enterramentos que se lhe adossaram e sobrepuseram. No relatório abaixo, sem qualquer retoque, datado de há vinte e dois anos, justificamos as quatro ilustrações que o acompanham:



“A tentativa de reconstituição arquitectónica de parte de uma unidade fabril, parcialmente escavada, do grandioso complexo conserveiro romano da estação arqueológica de Tróia, constitui um sério desafio à nossa capacidade de análise e compreensão das suas estruturas visíveis. Estas, nem sempre coerentes na sua organização espacial, apresentam-nos uma série de modificações que, ao longo dos tempos, resultaram em compartimentos de utilidade diversa.

Assim, como podemos ver na planta actual, duas grandes salas contíguas A e B, perpendiculares entre si, cada uma delas integrando tanques de salga C, justapostos ao longo de um corredor, servidos por um pátio interior D, comum, provido de poço e tanque adossado E, foram provavelmente as últimas a ser utilizadas na actividade industrial num período já decadente do Império; o tanque F, “roubado” à sala A, foi adaptado ao balneário situado paredes-meias a sudoeste; a pequena ruela G, esconde sob a areia um outro tanque de salga H, elo de ligação com a sala menor I, aproveitada para cemitério e igualmente provida de tanques de salga justapostos.

Vamos avançar par uma tentativa de reconstituição na primeira fase de utilização da unidade fabril, mais particularmente, da área relativa aos tanques de salga, uma vez que as áreas de aquecimento, preparação e armazenagem se desconhecem – a falta destas áreas de apoio ao “coração” da unidade fabril dificulta necessariamente a fidelidade da representação exterior, cujo aspecto e volume seria por elas modificado.

São evidentes os pilares e as paredes da construção mais antiga (ver legenda gráfica da planta), assim como o levantamento tardio de diversas paredes com o fim de compartimentá-la da maneira que vimos. Deste modo, na sala A, os pilares J que dão para o pátio, sem as paredes M que, de permeio, quase os fizeram desaparecer, caracterizam, pelo menos nesta ala, parte de uma construção alpendrada compluvial.

Os pilares P – perfeitamente identificados nas salas A e B e deduzíveis nas outras duas – indicam-nos a posição exacta da cumeeira, a partir da qual funcionaram quatro águas do telhado para o exterior e outras tantas para o interior.

Não sabemos se todas as alas teriam pilares que permitissem a utilização de grandes vãos, em relação ao pátio, no entanto parece-nos que a parede N é de construção tardia, com a finalidade de aumentar a área de utilização da ala B, fazendo desaparecer total ou parcialmente os alicerces dos pilares, os quais ainda hoje se poderão encontrar sob o pavimento de opus signinum. A construção de mais algumas paredes e dos pequenos tanques O, dividiram para sempre as alas A e B, anteriormente comunicantes – a própria união, de certo modo defeituosa R, no local onde antes foi um vão, perto do pilar de canto Q, revela a menor antiguidade da parede N, acrescida ainda do facto da sua grande proximidade ao tanque do poço deixar somente uma largura de 40cm para passagem, o que é manifestamente pouco funcional, dadas as características desta industria conserveira que, sem dúvida, requeria desenvoltura de movimentos. O interior, total ou parcialmente alpendrado, permitindo um acesso fácil e rápido, sem atropelos, dos operários, desde qualquer tanque de salga ao poço, situado sensivelmente a meio do pátio, é, quanto a nós, a hipótese mas provável, porque mais funcional – daí a tentativa de reconstituição agora executada (ver ilustrações dos aspectos iniciais da unidade fabril e da disposição dos tanques de salga no interior).

A porta principal situar-se-ia numa das alas da construção ainda por escavar, área onde possivelmente não haveria tanques de salga, constituindo uma das instalações de preparação ou outra. Esperemos que futuras escavações possam esclarecer melhor o funcionamento desta unidade fabril, cuja parte visível tem já uma dimensão razoável, cerca de 39x28m.

Para finalizar executámos um desenho livre, perspéctico, interpretativo da fase final de utilização dos tanques de salga, em duas salas distintas, a A e a B; o que mais é representado não pode ter rigor, pois não sabemos quando é que o tanque F, aproveitado no balneário, deixou de ser utilizado, nem quando foi aberta a pequena ruela e utilizados os tanques adjacentes para cemitério.

Tróia, Fevereiro de 1989, LB”

Nota: Este estudo foi publicado na nossa rubrica "Iconografia Pacense", no jornal Diário do Alentejo, em 2009.











quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A torre revivalista de Moura

Alguém teve a ideia de erigir uma torre, em terracota, esguia e suficientemente alta, para, com a devida proximidade, centralizar a vigilância sobre uma área importante da herdade dos Machados e servir, em simultâneo, de comunicação com o casario nobre que se estende, numa cota inferior, para NE, servido pela ribeira de Brenhas.
Viajando pela estrada que liga Moura a Sobral da Adiça encontramos, acerca de 2km da cidade, numa elevação à direita, na cota dos 208m (Carta Corográfica de Portugal 43-B, na escala 1:50000), uma curiosa torre, anexa a casa de feição moderna. Toda a área, situada entre a Herdade dos Machados e a “Fábrica do Visconde”, denota persistente ocupação humana desde a antiguidade e a tomada de medidas especiais quanto à sua defesa e vigilância. Uma linha recta, passando pela referida torre, une as medievas Atalaias Magra (cota 196) e Gorda (cota 276), situadas respectivamente a 2km para NNE e a 3,5km para SSO; duas linhas de água rodeando a torre afluem a pouco mais de 1000m para NNE na ribeira de Brenhas, provida de ponte romana, antes de desaguar, a 5km para NO, no rio Ardila.
Moura é terra de água e vegetação frondosa. Em cada recanto, seja urbano ou rural, há sempre uma nascente, um fontenário, um tanque ou um poço, contribuindo para um ambiente romântico que o desenvolvimento recente não maculou.
A torre, de base rectangular, tem cerca de 9,50m de altura, por 3,20m de largura máxima e 1,90m de largura mínima. Adossou-se-lhe pelo lado maior, contrário ao da sua entrada, uma pequena casa com sala, cozinha, quarto e outra pequena dependência. O tijolo maciço foi o material eleito na construção, aparelhado com maior acuidade na torre do que na casa. No âmbito da história de arte a sua arquitectura insere-se no período revivalista que, em Portugal, teve parâmetro cronológico bastante alargado, entre o final do século XIX e o primeiro quartel, ultrapassando-o até, do século XX. Com efeito, num dos pilares do portão da herdade, em tudo semelhante na técnica construtiva à da torre, persiste a data de 1924 que julgamos corresponda também à da sua construção.
Procurou-se nesta obra revivalista, de tipologia pseudo-militar, reproduzir as linhas essenciais de alguns dos elementos arquitectónicos mais expressivos da torre de Menagem de Beja. Se na torre de Moura, de tijolo maciço, é a sua natureza frágil e contemplativa, diria romântica, que sobressai; na de Beja, de mármore, é a omnipresença militar que tudo domina. A de Moura é quatro vezes menor do que a de Beja, enquanto o portal de entrada desta, situado ao nível do adarve, é de formato ogival, emoldurado por alfiz, o daquela, acessível a partir do solo, tem lintel composto pelos dois lados iguais de um triângulo isósceles (como um acento circunflexo). A escadaria da de Moura tem lanços rectos, enquanto a de Beja se reparte entre os lanços rectos e os dispostos em caracol. A torre de Moura será de 1924, contemporânea e revivalista, enquanto a de Beja é da segunda metade do século XIV, medieval e gótico-mudéjar. Na torre de Beja, o machicoullis, balcão ameado, suportado por cachorros, rodeia a torre e faz a transição funcional, de natureza militar, com o corpo superior, mais pequeno, de acesso ao mirante; na de Moura, o machicoullis, é puramente ornamental, parecendo servir o corpo “superior” (de secção igual ao “inferior”), provido de bancos corridos, mais apropriado para o deleite dos matizes paisagísticos do que para a vigilância dos trabalhos agrícolas.
Há, portanto, linguagens contemporâneas que ao imitarem outras do passado nem por isso deixam de ser originais, tal como o revela a torre de Moura, não só pelas suas forma e finalidade, como também pelo material utilizado. Não chega a ser uma miniaturização da torre de Beja porque, se fosse, ninguém caberia lá dentro, nem chegaria ao cimo – estiveram muito bem proprietário e construtor. Esta torre vem provar, mais uma vez, entre tantas manifestações humanas que atestam a influência do antigo sobre o novo, a dívida de uma geração para outra, o respeito que devemos aos nossos predecessores por assentarmos nos seus ombros os nossos sonhos.
O conjunto apresenta alguma degradação, mercê do abandono, mas nada obsta a que se possa proceder a uma recuperação em condições satisfatórias: telhado, portas e janelas, algum reboco e reconstituição de uns quantos merlões, não é tarefa complexa, nem muito onerosa. Esperamos que alguns dos nossos leitores nos façam chegar informação complementar sobre a história desta torre revivalista de Moura e que os municípios de Moura e de Beja conjuguem esforços para a preservação deste bem cultural.

BORRELA, Leonel – “Iconografia Pacense – A Torre revivalista de Moura” in Diário do Alentejo de 12 de Maio de 2006







segunda-feira, 13 de setembro de 2010

PORTO DE REI - Alcácer do Sal

Conhecemos muito pouco acerca do Rio Sado e da sua bacia hidrográfica que viram nascer, nas áreas de Colos e Alvalade, além dos nossos bisavós maternos - dos quais guardamos a tradicional fotografia de casal - uma parcela importante da família. A vida dá muitas voltas e dos tios e primos alentejanos só sabemos que alguns migraram, há mais de trinta e cinco anos, para o Algarve. Recordamos, de então, a fábrica “do concentrado de tomate”, em Alvalade, e a sua congénere, em Silves, uma espécie de El Dorado e a causa dessa deriva familiar.
Depois dessa afinidade com um insignificante percurso da estória da vida sadina, ainda, em criança, embarcados num “hovercraft”, em Setúbal, aportámos, pela mão de nossa mãe, às ruínas romanas de Tróia, concelho de Grândola. Aquelas dunas que tudo encobrem e as paredes altas e pintadas da basílica paleocristã marcaram para sempre o nosso imaginário e nem faltaram as pinhoadas de Alcácer do Sal que tantas vezes, durante os anos seguintes, têm sido cúmplices no prazer com que nos desviamos da rota.
A “descoberta”de um lugar quase abandonado, perdido no tempo e carregado de História, como foi o caso de Porto de Rei, do concelho e a montante de Alcácer do Sal, emocionou-nos. Devemos ao nosso amigo, senhor António da Costa Gomes [falecido em 2009], antigo gerente do Banco de Portugal, em Beja, a descrição fascinante, poética e exacta, que lá nos levou há doze anos. Costa Gomes tem um conhecimento profundo e heterogéneo do rio Sado, dos seus portos marítimo-fluviais, da mescla de actividades económicas e da história social, política, cultural e religiosa, que estimularam a evolução de uma das mais concorridas cidades desde a antiguidade pré-romana do ocidente peninsular. Costa Gomes[1] tem uma História escrita sobre o rio Sado e, em boa parte, ilustrada, ainda inédita, que urge publicar – que alguém nos ouça!, pois um contributo desta natureza não se encontra ao virar da esquina, ainda por cima sendo um trabalho sério [não chegou a ser publicado].
O rio Sado (Calipus ou Xâter, como lhe chamavam, respectivamente, romanos e árabes) nasce na Serra do Caldeirão e é, pois, uma estrada muito antiga e, à imagem de outros rios (Guadiana e Mira) que também no final do seu percurso percorrem suavemente os últimos quilómetros, também a linha férrea, quase plana, com curvas pouco acentuadas e longas rectas, lhe seguiu de perto o exemplo ao mesmo tempo que lhe retirava a importância económica que então detinha. Ao sabor da corrente, aproveitando a influência das marés que a acentuavam ou contrariavam, era volumoso o tráfico de barcos à vela ou a remos.
A primeira carreira de vapores – Alcácer, Setúbal e Lisboa – seria inaugurada em 12 de Fevereiro de 1847, chegando mesmo até Porto de El-Rei (como vem nalgumas dicionários corográficos antigos ou Porto de Rei, como vem na carta toponímica portuguesa), a cerca de cinco léguas para montante de Alcácer do Sal e a 70km, sempre navegáveis, do Atlântico. Depois de 1853, com a construção do caminho-de-ferro do Alentejo, Alcácer decairia consideravelmente. Produtos como a cortiça, carvão, cereais, minério e sal, entre muitos outros, deixam gradualmente de ser embarcados em Porto de Rei, Pocinho do Sal e na Foz de Sítimos e, mesmo, na própria vila de Alcácer, devido à construção do ramal ferroviário para Setúbal em 1861. Pela via ferroviária, os produtos, quase desde a sua origem, chegam mais rapidamente à capital, condenando à ruína os enormes celeiros do Empório comercial de Alcácer.
O porto de Mértola, diametralmente oposto e um pouco menos distante de Beja, rivalizava com o de Porto de Rei nos serviços prestados à capital sul alentejana, mas afinal, Beja, virava-se para Lisboa e já não para a economia mediterrânica pré-portuguesa. Contudo, ditaram as novas estradas e meios de transporte o descaminho mais imediato de Porto de Rei, contribuindo, por sua vez, a mina de S. Domingos, até ao fecho nos anos sessenta do século passado, para a azafama de Mértola e do rio Guadiana.
Porto de Rei é, assim, um daqueles sítios em que a história recente do homem mais espelha, agora mesmo sem água, os danos colaterais e quase irreversíveis de uma certa ideia de progresso, actualmente muito contestada, uma vez que é económica e humanamente possível a utilização de modo integrado de duas ou mais vias diferentes de desenvolvimento. O meandro ou um dos meandros do Sado que lhe passava pelo cais está assoreado, coberto de mato, canavial, silvas, como se nunca por ali tivesse ancorado um navio. As escadarias de pedra, adossadas ao cais, afundam-se na terra. O palacete de dois pisos, provido de pátio com portal brasonado e cantaria muito bem aparelhada, é de feição maneirista, talvez do século XVII, e os outros edifícios de apoio ao porto, de menor dimensão, encontram-se em ruína generalizada. Mas, o que mais confrange qualquer visitante é a dimensão do porto e a visão da sua teimosa e ainda viva funcionalidade a emergir dramaticamente da secura. A água passa-lhe ao largo, bem longe, como uma miragem.
Num espaço tão amplo, propriedade de alguém que mais parece ser de ninguém, seja ela uma entidade particular ou estatal, só uma impressão nos atormenta: a do país inculto e miserável em que vivemos. Porto de Rei, no concelho de Alcácer do Sal, é mais uma singular pérola do nosso património cultural a demandar melhor destino com vista à sua reabilitação e requalificação. Os desenhos foram realizados em 1994.

[1] GOMES, A. Costa – “Uma ponte sobre o rio”. In “Voz do Sado”. Alcácer do Sal: Igreja de Santiago, 2000. p.3 . Pequena crónica em que o autor descreve a construção de uma ponte de madeira entre Porto de Rei e o Porto de São Bento, respectivamente situados nas margens direita e esquerda do rio Sado. Noticia a constituição da sociedade entre Manuel Teixeira Penna e Thomas Maria Bessone, proprietário da herdade de Porto de Rei, em 1841. Do mesmo modo relata o desaparecimento da Ilha da Bicada, situada entre os dois portos, e que era contornada pelo braço de rio, hoje assoreado, que alinhava com o cais e permitia às embarcações a inversão de rumo. Porto de Rei funcionou até aos anos 40 do século passado com barcos de 6 a 7 toneladas, restando como mais conhecidos e antigos, ainda de oitocentos, o “Galeão do Sal”, “Laitau” e o “Hiate de Setúbal”.


BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Porto Rei" in Diário do Alentejo de 1 de Setembro de 2006.

Visite a degradação do nosso património cultural em  http://acultura.no.sapo.pt/page7.html. e http://iconografia-pacense.blogspot.com/

domingo, 27 de junho de 2010

Os valores singulares da museologia no Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, concelho de Sintra.




ICONOGRAFIA PACENSE (publicado no jornal Diário do Alentejo em Julho 2009)



Os valores singulares da museologia no Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, concelho de Sintra.

Recordamos com prazer o Museu Arqueológico de Odrinhas e o(s) sentido(s) da História que se retira(m) da pedagógica exposição do seu valiosíssimo espólio arqueológico. Ali não se coloca uma cátedra de museologia no meio da sala, bem visível para que todos a vejam e venerem, à espera que um espólio arqueológico riquíssimo e variado se lhe adapte por artes mágicas. Ali há inteligência na concepção de um espaço que pressupõe um discurso histórico e filosófico fora do comum, onde a morte desafia os visitantes ao rodear-se dos instrumentos da vida: três extraordinários túmulos etruscos, os únicos existentes em Portugal, constituem a antecâmara de um passado mitológico greco-romano gradualmente desacreditado pelo cristianismo. Vêem-se, sentem-se e imaginam-se, os grandes espaços destinados aos deuses, às obras eternas e ao sincretismo que em todos os povos sempre foi sinal de tolerância religiosa e política. Evocam-se consequentemente o número restrito de praticantes e o espaço intimista associados à evolução paleocristã, assim como a metáfora do Tempo , através de Cronos, um deus-Titã grego da segunda geração, filho mais novo de Úrano (o céu estrelado) e de Gaia (a Terra), que mantém a sua eternidade consumindo os próprios filhos (excepto Zeus).
Apreciámos os espaços, interior e exterior, a comunhão quase perfeita entre períodos distintos, com vestígios in situ desde o período romano e medieval, até aos nossos dias. Da villae romana subsistem estruturas da parte mais nobre da casa, ainda com paredes elevadas de configuração absidal, semicilíndrica (no género das dos templos romano de S. Cucufate, no concelho da Vidigueira, e de Estói, no Algarve), e um pavimento de mosaico, razoavelmente bem conservado, de entre os muitos que foram paulatinamente destruídos, ao longo de centenas de anos, para assento de um cemitério cristão. Neste particular, Odrinhas, é dos raros locais onde ainda se apresentam no seu lugar de origem, à cabeceira da sepultura correspondente, as estelas funerárias discóides com atributos da profissão e da confissão religiosa do falecido. Aliás, além deste interessantíssimo museu a céu aberto, protegem-se no interior do edifício museológico uma quantidade razoável das mais belas estelas discóides que, até hoje, vimos em Portugal – não serão todas de Odrinhas, mas revelam bem a sensibilidade artística e a devoção religiosa das gentes remotas do concelho de Sintra. Beja possui, de entre as colecções da praça de armas do castelo (recentemente retirada) e do Museu Regional (em depósito na ermida de S. Sebastião), além de mais umas largas dezenas identificadas noutros edifícios, a maior colecção nacional de estelas funerárias discóides, datáveis dos séculos XIII a XVI.
No museu de Odrinhas, as visitas são acompanhadas por um guia e, apesar de já conhecermos uma parte razoável do seu espólio, não nos sentimos condicionados pelo percurso ou ritmo de funcionamento adoptados pela instituição. Um não especialista teria imensa dificuldade, pela especificidade do museu, em apreender sozinho a análise histórica que nos foi proposta pela excelente guia, dra. Diana Pereira, e pela incontornável concepção museológica do dr. José Cardim Ribeiro. Estão também de parabéns os arquitectos António Maria Braga e Alberto Castro Nunes. Talvez faltem umas quantas legendas, mas, garantimos, a visita guiada é essencial e agradável, e mesmo se se tiver de esperar pelo início da próxima visita, podemos descansar um pouco na cafetaria e seleccionar os catálogos, postais e cópias de peças que pretendemos trazer. No grande pátio de entrada constam os nomes de todos os beneméritos e estudiosos da arqueologia de Odrinhas e da formação do museu – estão referenciados nomes como Francisco d`Ollanda e André de Resende, entre dezenas e dezenas de outros, como D. Fernando de Almeida que ainda conhecemos, em Beja, e para quem realizámos alguns desenhos, aquando da continuação do seu estudo sobre o período visigodo.
Observados em pormenor os maravilhosos túmulos etruscos, entramos num espaço que mais parece uma avenida cuja via central está ladeada da maior quantidade e qualidade de monumentos funerários romanos epigrafados existentes no nosso país. As inscrições viradas para o corredor, para que os viandantes as pudessem ler e fazer as suas preces. Esta é também a quarta ou a quinta maior colecção mundial de epigrafia romana. Em contrapartida são muito menos, mas não menos importantes as lápides votivas dedicadas a deuses e imperadores.
Numa sucessão cronológica bem estudada (porque nem sempre respeitada devido às diferentes interpretações que se podem extrair do objecto histórico), passamos de seguida par um espaço não só reduzido como ainda mais compartimentado. Acima das nossas cabeças, sobre vãos que vamos ultrapassando, num percurso iniciático, foram colocados lintéis gravados com as insígnias do paleocristianismo: círculos, cruzes, alfa e ómega, signos que caracterizam o antes e o depois do baptismo (árvore seca/árvore frondosa), dedicação aos mártires, à Virgem Maria… um pequeno santuário, compacto, de segredo bem guardado, dos primórdios do cristianismo. Mais à frente, um novo desafio, a sala de Cronos, mostrando os efeitos do tempo e da acção dos homens sobre o seu próprio património, conferindo-se a peças variadas novos reaproveitamentos e funcionalidades. Depois, um corredor onde se expõem além da notável colecção de estelas discóides outras lápides e arcas funerárias. Mais a reconstituição aproximada de um gabinete lapidar, homenageando os primeiros eruditos da história e da arqueologia. Embora uma visita destas nunca se dê por terminada, uma última sala, faz justiça à demarcação Fines, fronteira, em latim, pondo fim ao percurso realizado pelo tão bem apresentado “Livro de Pedra”, mas não é realmente o fim, ainda há os marcos das propriedades, os do termo de Lisboa, o Auditório para 100 lugares, a Biblioteca, etc., etc,.
Caro leitor, assim que possa, vá descobrir o resto e avaliar o que descrevemos. Quanto aos bejenses, em particular, guardiões de um património cultural, igualmente valioso, só lhes resta de facto seguir o exemplo de Odrinhas.

Leonel Borrela