quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A torre revivalista de Moura

Alguém teve a ideia de erigir uma torre, em terracota, esguia e suficientemente alta, para, com a devida proximidade, centralizar a vigilância sobre uma área importante da herdade dos Machados e servir, em simultâneo, de comunicação com o casario nobre que se estende, numa cota inferior, para NE, servido pela ribeira de Brenhas.
Viajando pela estrada que liga Moura a Sobral da Adiça encontramos, acerca de 2km da cidade, numa elevação à direita, na cota dos 208m (Carta Corográfica de Portugal 43-B, na escala 1:50000), uma curiosa torre, anexa a casa de feição moderna. Toda a área, situada entre a Herdade dos Machados e a “Fábrica do Visconde”, denota persistente ocupação humana desde a antiguidade e a tomada de medidas especiais quanto à sua defesa e vigilância. Uma linha recta, passando pela referida torre, une as medievas Atalaias Magra (cota 196) e Gorda (cota 276), situadas respectivamente a 2km para NNE e a 3,5km para SSO; duas linhas de água rodeando a torre afluem a pouco mais de 1000m para NNE na ribeira de Brenhas, provida de ponte romana, antes de desaguar, a 5km para NO, no rio Ardila.
Moura é terra de água e vegetação frondosa. Em cada recanto, seja urbano ou rural, há sempre uma nascente, um fontenário, um tanque ou um poço, contribuindo para um ambiente romântico que o desenvolvimento recente não maculou.
A torre, de base rectangular, tem cerca de 9,50m de altura, por 3,20m de largura máxima e 1,90m de largura mínima. Adossou-se-lhe pelo lado maior, contrário ao da sua entrada, uma pequena casa com sala, cozinha, quarto e outra pequena dependência. O tijolo maciço foi o material eleito na construção, aparelhado com maior acuidade na torre do que na casa. No âmbito da história de arte a sua arquitectura insere-se no período revivalista que, em Portugal, teve parâmetro cronológico bastante alargado, entre o final do século XIX e o primeiro quartel, ultrapassando-o até, do século XX. Com efeito, num dos pilares do portão da herdade, em tudo semelhante na técnica construtiva à da torre, persiste a data de 1924 que julgamos corresponda também à da sua construção.
Procurou-se nesta obra revivalista, de tipologia pseudo-militar, reproduzir as linhas essenciais de alguns dos elementos arquitectónicos mais expressivos da torre de Menagem de Beja. Se na torre de Moura, de tijolo maciço, é a sua natureza frágil e contemplativa, diria romântica, que sobressai; na de Beja, de mármore, é a omnipresença militar que tudo domina. A de Moura é quatro vezes menor do que a de Beja, enquanto o portal de entrada desta, situado ao nível do adarve, é de formato ogival, emoldurado por alfiz, o daquela, acessível a partir do solo, tem lintel composto pelos dois lados iguais de um triângulo isósceles (como um acento circunflexo). A escadaria da de Moura tem lanços rectos, enquanto a de Beja se reparte entre os lanços rectos e os dispostos em caracol. A torre de Moura será de 1924, contemporânea e revivalista, enquanto a de Beja é da segunda metade do século XIV, medieval e gótico-mudéjar. Na torre de Beja, o machicoullis, balcão ameado, suportado por cachorros, rodeia a torre e faz a transição funcional, de natureza militar, com o corpo superior, mais pequeno, de acesso ao mirante; na de Moura, o machicoullis, é puramente ornamental, parecendo servir o corpo “superior” (de secção igual ao “inferior”), provido de bancos corridos, mais apropriado para o deleite dos matizes paisagísticos do que para a vigilância dos trabalhos agrícolas.
Há, portanto, linguagens contemporâneas que ao imitarem outras do passado nem por isso deixam de ser originais, tal como o revela a torre de Moura, não só pelas suas forma e finalidade, como também pelo material utilizado. Não chega a ser uma miniaturização da torre de Beja porque, se fosse, ninguém caberia lá dentro, nem chegaria ao cimo – estiveram muito bem proprietário e construtor. Esta torre vem provar, mais uma vez, entre tantas manifestações humanas que atestam a influência do antigo sobre o novo, a dívida de uma geração para outra, o respeito que devemos aos nossos predecessores por assentarmos nos seus ombros os nossos sonhos.
O conjunto apresenta alguma degradação, mercê do abandono, mas nada obsta a que se possa proceder a uma recuperação em condições satisfatórias: telhado, portas e janelas, algum reboco e reconstituição de uns quantos merlões, não é tarefa complexa, nem muito onerosa. Esperamos que alguns dos nossos leitores nos façam chegar informação complementar sobre a história desta torre revivalista de Moura e que os municípios de Moura e de Beja conjuguem esforços para a preservação deste bem cultural.

BORRELA, Leonel – “Iconografia Pacense – A Torre revivalista de Moura” in Diário do Alentejo de 12 de Maio de 2006







segunda-feira, 13 de setembro de 2010

PORTO DE REI - Alcácer do Sal

Conhecemos muito pouco acerca do Rio Sado e da sua bacia hidrográfica que viram nascer, nas áreas de Colos e Alvalade, além dos nossos bisavós maternos - dos quais guardamos a tradicional fotografia de casal - uma parcela importante da família. A vida dá muitas voltas e dos tios e primos alentejanos só sabemos que alguns migraram, há mais de trinta e cinco anos, para o Algarve. Recordamos, de então, a fábrica “do concentrado de tomate”, em Alvalade, e a sua congénere, em Silves, uma espécie de El Dorado e a causa dessa deriva familiar.
Depois dessa afinidade com um insignificante percurso da estória da vida sadina, ainda, em criança, embarcados num “hovercraft”, em Setúbal, aportámos, pela mão de nossa mãe, às ruínas romanas de Tróia, concelho de Grândola. Aquelas dunas que tudo encobrem e as paredes altas e pintadas da basílica paleocristã marcaram para sempre o nosso imaginário e nem faltaram as pinhoadas de Alcácer do Sal que tantas vezes, durante os anos seguintes, têm sido cúmplices no prazer com que nos desviamos da rota.
A “descoberta”de um lugar quase abandonado, perdido no tempo e carregado de História, como foi o caso de Porto de Rei, do concelho e a montante de Alcácer do Sal, emocionou-nos. Devemos ao nosso amigo, senhor António da Costa Gomes [falecido em 2009], antigo gerente do Banco de Portugal, em Beja, a descrição fascinante, poética e exacta, que lá nos levou há doze anos. Costa Gomes tem um conhecimento profundo e heterogéneo do rio Sado, dos seus portos marítimo-fluviais, da mescla de actividades económicas e da história social, política, cultural e religiosa, que estimularam a evolução de uma das mais concorridas cidades desde a antiguidade pré-romana do ocidente peninsular. Costa Gomes[1] tem uma História escrita sobre o rio Sado e, em boa parte, ilustrada, ainda inédita, que urge publicar – que alguém nos ouça!, pois um contributo desta natureza não se encontra ao virar da esquina, ainda por cima sendo um trabalho sério [não chegou a ser publicado].
O rio Sado (Calipus ou Xâter, como lhe chamavam, respectivamente, romanos e árabes) nasce na Serra do Caldeirão e é, pois, uma estrada muito antiga e, à imagem de outros rios (Guadiana e Mira) que também no final do seu percurso percorrem suavemente os últimos quilómetros, também a linha férrea, quase plana, com curvas pouco acentuadas e longas rectas, lhe seguiu de perto o exemplo ao mesmo tempo que lhe retirava a importância económica que então detinha. Ao sabor da corrente, aproveitando a influência das marés que a acentuavam ou contrariavam, era volumoso o tráfico de barcos à vela ou a remos.
A primeira carreira de vapores – Alcácer, Setúbal e Lisboa – seria inaugurada em 12 de Fevereiro de 1847, chegando mesmo até Porto de El-Rei (como vem nalgumas dicionários corográficos antigos ou Porto de Rei, como vem na carta toponímica portuguesa), a cerca de cinco léguas para montante de Alcácer do Sal e a 70km, sempre navegáveis, do Atlântico. Depois de 1853, com a construção do caminho-de-ferro do Alentejo, Alcácer decairia consideravelmente. Produtos como a cortiça, carvão, cereais, minério e sal, entre muitos outros, deixam gradualmente de ser embarcados em Porto de Rei, Pocinho do Sal e na Foz de Sítimos e, mesmo, na própria vila de Alcácer, devido à construção do ramal ferroviário para Setúbal em 1861. Pela via ferroviária, os produtos, quase desde a sua origem, chegam mais rapidamente à capital, condenando à ruína os enormes celeiros do Empório comercial de Alcácer.
O porto de Mértola, diametralmente oposto e um pouco menos distante de Beja, rivalizava com o de Porto de Rei nos serviços prestados à capital sul alentejana, mas afinal, Beja, virava-se para Lisboa e já não para a economia mediterrânica pré-portuguesa. Contudo, ditaram as novas estradas e meios de transporte o descaminho mais imediato de Porto de Rei, contribuindo, por sua vez, a mina de S. Domingos, até ao fecho nos anos sessenta do século passado, para a azafama de Mértola e do rio Guadiana.
Porto de Rei é, assim, um daqueles sítios em que a história recente do homem mais espelha, agora mesmo sem água, os danos colaterais e quase irreversíveis de uma certa ideia de progresso, actualmente muito contestada, uma vez que é económica e humanamente possível a utilização de modo integrado de duas ou mais vias diferentes de desenvolvimento. O meandro ou um dos meandros do Sado que lhe passava pelo cais está assoreado, coberto de mato, canavial, silvas, como se nunca por ali tivesse ancorado um navio. As escadarias de pedra, adossadas ao cais, afundam-se na terra. O palacete de dois pisos, provido de pátio com portal brasonado e cantaria muito bem aparelhada, é de feição maneirista, talvez do século XVII, e os outros edifícios de apoio ao porto, de menor dimensão, encontram-se em ruína generalizada. Mas, o que mais confrange qualquer visitante é a dimensão do porto e a visão da sua teimosa e ainda viva funcionalidade a emergir dramaticamente da secura. A água passa-lhe ao largo, bem longe, como uma miragem.
Num espaço tão amplo, propriedade de alguém que mais parece ser de ninguém, seja ela uma entidade particular ou estatal, só uma impressão nos atormenta: a do país inculto e miserável em que vivemos. Porto de Rei, no concelho de Alcácer do Sal, é mais uma singular pérola do nosso património cultural a demandar melhor destino com vista à sua reabilitação e requalificação. Os desenhos foram realizados em 1994.

[1] GOMES, A. Costa – “Uma ponte sobre o rio”. In “Voz do Sado”. Alcácer do Sal: Igreja de Santiago, 2000. p.3 . Pequena crónica em que o autor descreve a construção de uma ponte de madeira entre Porto de Rei e o Porto de São Bento, respectivamente situados nas margens direita e esquerda do rio Sado. Noticia a constituição da sociedade entre Manuel Teixeira Penna e Thomas Maria Bessone, proprietário da herdade de Porto de Rei, em 1841. Do mesmo modo relata o desaparecimento da Ilha da Bicada, situada entre os dois portos, e que era contornada pelo braço de rio, hoje assoreado, que alinhava com o cais e permitia às embarcações a inversão de rumo. Porto de Rei funcionou até aos anos 40 do século passado com barcos de 6 a 7 toneladas, restando como mais conhecidos e antigos, ainda de oitocentos, o “Galeão do Sal”, “Laitau” e o “Hiate de Setúbal”.


BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Porto Rei" in Diário do Alentejo de 1 de Setembro de 2006.

Visite a degradação do nosso património cultural em  http://acultura.no.sapo.pt/page7.html. e http://iconografia-pacense.blogspot.com/