ICONOGRAFIA PACENSE (publicado no jornal Diário do Alentejo em Julho 2009)
Os valores singulares da museologia no Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, concelho de Sintra.
Recordamos com prazer o Museu Arqueológico de Odrinhas e o(s) sentido(s) da História que se retira(m) da pedagógica exposição do seu valiosíssimo espólio arqueológico. Ali não se coloca uma cátedra de museologia no meio da sala, bem visível para que todos a vejam e venerem, à espera que um espólio arqueológico riquíssimo e variado se lhe adapte por artes mágicas. Ali há inteligência na concepção de um espaço que pressupõe um discurso histórico e filosófico fora do comum, onde a morte desafia os visitantes ao rodear-se dos instrumentos da vida: três extraordinários túmulos etruscos, os únicos existentes em Portugal, constituem a antecâmara de um passado mitológico greco-romano gradualmente desacreditado pelo cristianismo. Vêem-se, sentem-se e imaginam-se, os grandes espaços destinados aos deuses, às obras eternas e ao sincretismo que em todos os povos sempre foi sinal de tolerância religiosa e política. Evocam-se consequentemente o número restrito de praticantes e o espaço intimista associados à evolução paleocristã, assim como a metáfora do Tempo , através de Cronos, um deus-Titã grego da segunda geração, filho mais novo de Úrano (o céu estrelado) e de Gaia (a Terra), que mantém a sua eternidade consumindo os próprios filhos (excepto Zeus).
Apreciámos os espaços, interior e exterior, a comunhão quase perfeita entre períodos distintos, com vestígios in situ desde o período romano e medieval, até aos nossos dias. Da villae romana subsistem estruturas da parte mais nobre da casa, ainda com paredes elevadas de configuração absidal, semicilíndrica (no género das dos templos romano de S. Cucufate, no concelho da Vidigueira, e de Estói, no Algarve), e um pavimento de mosaico, razoavelmente bem conservado, de entre os muitos que foram paulatinamente destruídos, ao longo de centenas de anos, para assento de um cemitério cristão. Neste particular, Odrinhas, é dos raros locais onde ainda se apresentam no seu lugar de origem, à cabeceira da sepultura correspondente, as estelas funerárias discóides com atributos da profissão e da confissão religiosa do falecido. Aliás, além deste interessantíssimo museu a céu aberto, protegem-se no interior do edifício museológico uma quantidade razoável das mais belas estelas discóides que, até hoje, vimos em Portugal – não serão todas de Odrinhas, mas revelam bem a sensibilidade artística e a devoção religiosa das gentes remotas do concelho de Sintra. Beja possui, de entre as colecções da praça de armas do castelo (recentemente retirada) e do Museu Regional (em depósito na ermida de S. Sebastião), além de mais umas largas dezenas identificadas noutros edifícios, a maior colecção nacional de estelas funerárias discóides, datáveis dos séculos XIII a XVI.
No museu de Odrinhas, as visitas são acompanhadas por um guia e, apesar de já conhecermos uma parte razoável do seu espólio, não nos sentimos condicionados pelo percurso ou ritmo de funcionamento adoptados pela instituição. Um não especialista teria imensa dificuldade, pela especificidade do museu, em apreender sozinho a análise histórica que nos foi proposta pela excelente guia, dra. Diana Pereira, e pela incontornável concepção museológica do dr. José Cardim Ribeiro. Estão também de parabéns os arquitectos António Maria Braga e Alberto Castro Nunes. Talvez faltem umas quantas legendas, mas, garantimos, a visita guiada é essencial e agradável, e mesmo se se tiver de esperar pelo início da próxima visita, podemos descansar um pouco na cafetaria e seleccionar os catálogos, postais e cópias de peças que pretendemos trazer. No grande pátio de entrada constam os nomes de todos os beneméritos e estudiosos da arqueologia de Odrinhas e da formação do museu – estão referenciados nomes como Francisco d`Ollanda e André de Resende, entre dezenas e dezenas de outros, como D. Fernando de Almeida que ainda conhecemos, em Beja, e para quem realizámos alguns desenhos, aquando da continuação do seu estudo sobre o período visigodo.
Observados em pormenor os maravilhosos túmulos etruscos, entramos num espaço que mais parece uma avenida cuja via central está ladeada da maior quantidade e qualidade de monumentos funerários romanos epigrafados existentes no nosso país. As inscrições viradas para o corredor, para que os viandantes as pudessem ler e fazer as suas preces. Esta é também a quarta ou a quinta maior colecção mundial de epigrafia romana. Em contrapartida são muito menos, mas não menos importantes as lápides votivas dedicadas a deuses e imperadores.
Numa sucessão cronológica bem estudada (porque nem sempre respeitada devido às diferentes interpretações que se podem extrair do objecto histórico), passamos de seguida par um espaço não só reduzido como ainda mais compartimentado. Acima das nossas cabeças, sobre vãos que vamos ultrapassando, num percurso iniciático, foram colocados lintéis gravados com as insígnias do paleocristianismo: círculos, cruzes, alfa e ómega, signos que caracterizam o antes e o depois do baptismo (árvore seca/árvore frondosa), dedicação aos mártires, à Virgem Maria… um pequeno santuário, compacto, de segredo bem guardado, dos primórdios do cristianismo. Mais à frente, um novo desafio, a sala de Cronos, mostrando os efeitos do tempo e da acção dos homens sobre o seu próprio património, conferindo-se a peças variadas novos reaproveitamentos e funcionalidades. Depois, um corredor onde se expõem além da notável colecção de estelas discóides outras lápides e arcas funerárias. Mais a reconstituição aproximada de um gabinete lapidar, homenageando os primeiros eruditos da história e da arqueologia. Embora uma visita destas nunca se dê por terminada, uma última sala, faz justiça à demarcação Fines, fronteira, em latim, pondo fim ao percurso realizado pelo tão bem apresentado “Livro de Pedra”, mas não é realmente o fim, ainda há os marcos das propriedades, os do termo de Lisboa, o Auditório para 100 lugares, a Biblioteca, etc., etc,.
Caro leitor, assim que possa, vá descobrir o resto e avaliar o que descrevemos. Quanto aos bejenses, em particular, guardiões de um património cultural, igualmente valioso, só lhes resta de facto seguir o exemplo de Odrinhas.
Leonel Borrela